As privatizações de Milei, as cores da Copa Africana e as realidades da Copa Asiática
Esta é a Futebol no Fim do Mundo #22
Milei quer privatizar até o futebol
Javier Milei nem esperou muito para começar a acabar com a Argentina. No dia 10/12 ele assumiu o poder e antes mesmo da virada para 2024 já estava valendo seu megadecreto - “um verdadeiro pacote essencialmente neoliberal que cria, revoga ou altera um total de 300 legislações em diferentes frentes”, nas palavras da ótima newsletter do Giro Latino.
Entre as medidas que provavelmente vão fazer a Argentina ser vendida e virar Brasil do Sul (e fazendo do Campeonato Argentino um campeonato estadual de começo de ano), uma delas entra no escopo futbolero. Do G1: “Uma das mudanças decretadas pelo novo líder do país muda a Lei das Sociedades por Ações e permite que os clubes possam se tornar empresas com investidores e até mesmo com uma Sociedade Anônima, popularmente chamadas de SAF.”
No Brasil, em vários grandes centros futebolísticos da Europa e em outros lugares do mundo, as SAFs ou outros modelos similares já são uma realidade. Mas na Argentina o pessoal é bem sério quanto a isso. A própria Asociación del Fútbol Argentino (AFA) e a Liga Profissional se posicionam de forma incisiva no sentido de apontar que os clubes do país são, e devem seguir sendo, associações civis sem fins lucrativos.
Como em poucos ou nenhum lugar do mundo, os clubes argentinos têm uma relação bastante próxima com a comunidade onde estão inseridos. Não há melhor exemplo que a treta de quase 30 anos que opôs o San Lorenzo e o… Carrefour - leia mais na matéria da ESPN. Portanto, devem se manter imunes a quaisquer interesses como o lucro financeiro pessoal de possíveis donos. Alguns clubes têm até menção específica a isso em seus estatutos.
Portanto, quando Milei quis mexer com os clubes em seu megadecreto, a reação foi forte entre torcedores, times e associações. Equipes entraram em campo com uma faixa dizendo que “o futebol não tem necessidades nem urgências”, em menção ao “Decreto de Necesidad y Urgencia”, nome dado ao mega pacote de medidas de Milei.
Milei tem costas quentes para a privatização. Uma empreitada desse tipo já foi empreendida pelo último presidente de direita antes dele, Maurício Macri, que já comandou o Boca Juniors antes de assumir o país e, na recente eleição para a presidência do Boca, entrou como candidato a vice. A newsletter do Puntero Izquierdo, especializada no fulbo da América do Sul, elucida algumas coisas:
“Os argumentos de Milei e Macri são basicamente os mesmos. Ambos utilizam a Europa como caso de sucesso que justificaria aprovação às SADs. Os dois, porém, também se esquecem dos diversos protestos das torcidas dos privatizados clubes ingleses, alemães e etc contra os proprietários que pensam no lucro e no dinheiro.”
Uma matéria de Róbson Martins no Terra explica em mais detalhes a proposta e as reações, incluindo as vaias recebidas por Milei quando foi votar para presidente do Boca, do qual é sócio. Mesmo após a forte oposição de diversas frentes, o decreto segue em pé, mas não sabemos por quanto tempo.
Cores, danças e zebras: começou a Copa Africana de Nações
Começou no último sábado, 13/01, a Copa Africana de Nações, a maior competição de seleções do continente mãe. A sede desta edição de 2023 é a Costa do Marfim. E sim, é a edição de 2023 mesmo, eu não errei o ano como quem erra o preenchimento da folha do cheque no começo do ano seguinte. É que esta edição devia ter acontecido no meio do ano passado, mas foi adiada para janeiro por causa do clima quente daquela época do ano. E fica esse spoiler para o próximo tópico da newsletter, pois esse também é o motivo para a Copa Asiática, no Catar, estar rolando agora.
O maior atrativo da CAN é o equilíbrio. Das 24 seleções participantes, eu conto 10 candidatas claras ao título (e algumas já perderam ou empataram na primeira rodada. Vamos chegar lá). A última edição teve como campeão Senegal, um time tradicional mas que nunca havia levantado a taça. O canal do YouTube África Mamba fez um guia completão das principais equipes da Copa e o twitter do Ponta de Lança, especializado em futebol africano, está fazendo um acompanhamento bem próximo do dia a dia da competição.
O equilíbrio da competição é proporcionado, em parte, por equipes fechadas e meio amedrontadas. Mesmo jogos com disparidade de nível técnico entre as seleções terminam com poucos gols. Por isso, tenho a lembrança de não ter gostado do nível dos jogos da última edição, de 2021 (realizada no começo de 2022 por causa da pandemia).
O lado bom desse equilíbrio é a maior propensão a zebras. Somente nos jogos realizados até o momento da escrita desta edição, a Nigéria, que entre outros jogadores estrelados tem Osimhen, artilheiro do Napoli, empatou com Guiné Equatorial. No grupo B, as seleções lusófonas surpreenderam duplamente: Moçambique empatou com o Egito, de Salah, e Cabo Verde venceu Gana, quase semifinalista da Copa do Mundo de 2010. Teve ainda Guiné beliscando um empate com Camarões, que venceu nada menos que o Brasil na Copa de 2022. Para completar o giro muito bem sucedido pelos países de língua portuguesa, Angola empatou com a Argélia, aquela que levou para a prorrogação as oitavas de final contra a futura campeã Alemanha na Copa de 2014. E para finalizar esse monte de zebras, a Tunísia, nº 28 no ranking da FIFA, perdeu para a Namíbia, 115ª colocada (!). Viu o tamanho que ficou o parágrafo, com tanta zebra que já rolou? E foi apenas a primeira rodada.
Mas para além das quatro linhas, a CAN chama a atenção pelo caldeirão cultural abarcado. É gostoso ver quando a câmera foca nas torcidas ao longo dos jogos e há sempre coreografias, sorrisos e cores. O jogo é um detalhe dentro de um contexto maior de celebração da africanidade e das culturas locais de cada país.
Nesse aspecto cultural, o perfil do Peleja no Instagram trouxe uma galeria com os trajes de viagem das equipes. Coisa finíssima.
A Copa Africana de Nações segue até 11 de fevereiro e promete ainda mais equilíbrio.
Copa Asiática: choque de realidades
A Copa Asiática é a outra competição regional de seleções que está rolando no momento junto com a CAN. Está sendo disputada no Catar, que aproveita a estrutura legada da Copa do Mundo de 2022 jogada por lá. O país também é o atual campeão, num título bastante surpreendente. A cotação da aposta no título do Catar era de 41 dinheiros para cada 1 apostado. Era o 9º maior favorito dos 24 participantes.
O que mais me atrai na Copa Asiática é que se trata da competição regional com maior diversidade de territórios, crenças e culturas. O torneio abrange uma parte tão grande do mundo que a versão de clubes do torneio da região, a AFC Champions League, começa de forma regionalizada, com metade dos grupos formados por países do Oriente Médio e a outra parte sendo disputada por times do Sudeste Asiático, ainda tendo como cereja do bolo a Austrália, que disputa as competições asiáticas tanto de clubes quanto de seleções já que o nível técnico do futebol da Oceania é muito pouco desafiador para os socceroos. Mas na competição de seleções é tudo misturado, proporcionando confrontos curiosos em questão de diferenças culturais, como Austrália x Síria e Iraque x Japão. Japão, aliás, que é o país da primeira árbitra da história da competição.
Ainda mais nesta edição de 2023, o foco geopolítico da Copa Asiática inevitavelmente tem sido nas seleções do Oriente Médio. Tanto pelos confrontos quanto pelos resultados obtidos por elas. Israel, apesar de ser da região, disputa competições internacionais na Europa justamente pela inimizade com a maioria dos países do Oriente Médio, restando ao futebol asiático países da região com muito em comum.
A competição foi logo aberta com um Catar x Líbano, países diretamente ligados ao conflito que se iniciou com Israel e Hamas em 7 de outubro. Enquanto um é acusado de financiar o Hamas com dinheiro disfarçado de ajuda humanitária, o outro padece de forma secundária ao conflito na Faixa de Gaza, com o grupo local Hezbollah cada vez mais dentro das ofensivas.
E mesmo com tudo o que acontece em Gaza, a Palestina joga bola - e faz gol. Mesmo com um status incerto sobre o reconhecimento como um Estado, a seleção do território é filiada à FIFA e joga nas competições internacionais, com todas as limitações que podemos imaginar em relação a isso.
Uma reportagem do La Nación dá um sensível panorama da relação entre a participação palestina na Copa Asiática e o que acontece em Gaza. Na véspera da competição, o técnico da seleção local lamentou a morte do treinador da equipe olímpica palestina num bombardeio. Um jornalista estadunidense informou que já são 88 jogadores da elite do território mortos desde o começo da guerra.
E mesmo com tantas bombas e com toda a barbárie que acomete especialmente uma das duas partes de seu território, a Palestina não faz nada feio: perdeu para a forte seleção do Irã, frequente em Copas do Mundo, mas chegou a fazer um gol - apenas o segundo da história da Palestina na história da competição. O jogo teve um minuto de silêncio antes de a bola rolar, e dois dos jogadores do Irã não comemoraram seus gols. Na segunda rodada, a Palestina empatou com a boa seleção dos Emirados Árabes e chega à última rodada ainda com chances de classificação.
A Copa Asiática vai até 10 de fevereiro, com maiores chances de título para os mais estruturados times de Japão e Coréia do Sul. Pelos lados do Oriente Médio, a expectativa de maior sucesso vai para Irã e Arábia Saudita. A Austrália chega da Oceania com chances também. Mas como vimos na última edição, sempre pode haver uma zebra, então fiquemos atentos.