As vitórias de Jhon Arias, AFC Wimbledon e Vini Jr. que vão além de ganhar um jogo
Esta é a Futebol no Fim do Mundo #27
Jhon Arias x seus demônios
Há cerca de um mês, o jovem e já craque Endrick deu uma entrevista à revista Placar e foi bem infeliz ao desdenhar do trabalho da profissão de psicólogo:
“Meu psicólogo, primeiramente, é Deus. Eu não preciso abrir meu coração para mais ninguém. Eu tenho Deus na minha vida, eu não preciso desabafar com outra pessoa que não vai nem conhecer meus pais, não vai nem conhecer minha pessoa.”
Como disse Leandro Iamin no podcast Meiocampo, a fala de Endrick ainda tem uma carga muito baixa de opinião própria. Com 17 anos, é normal que suas posições ainda contenham uma forte carga de influências externas que participam de sua formação. No caso específico desta, a influência parece ser de um pastor.
A posição de Endrick é problemática em muitos níveis, e essa entortada de cara que você deve ter dado quando leu a frase dele acima já mostra que eu não preciso detalhar todos eles aqui. Quem fez isso melhor foram o Carlos Vinicius Amorim e o Diego Iwata Lima em uma matéria na Trivela, trazendo psicólogos do esporte para desmistificar essa história.
Quem preferiu adotar uma abordagem bastante diferente foi Jhon Arias, colombiano que atua pelo Fluminense. Na conquista da Libertadores pelo time carioca, em Novembro de 2023, Jhon Arias dedicou o título à sua psicóloga, Emily Gonçalves: “Hoje, eu sou feliz. Obrigado por tudo. O que eu sou hoje, você quem fez.”
Tamanha gratidão vem de um trabalho feito por Arias junto a Emily que se iniciou em 2021, quando o colombiano chegou ao Fluminense. Ele havia acabado de perder sua avó e pensou muitas vezes em desistir do futebol. Mais na matéria do Correio Braziliense.
Avançamos quase quatro meses para frente e chegamos à Recopa Sul-Americana, na quinta passada. Após um 0x0 difícil na ida, o Fluminense vence a LDU por 2 a 0 e conquista o título. Jhon Arias marcou os dois gols do Tricolor. Além da força de Emily Gonçalves no âmbito particular, Arias faz parte de um elenco comandado por Fernando Diniz, também formado em psicologia. A força mental, justamente, foi um dos fatores que mais destacaram esse Fluminense campeão da América e agora também da Recopa.
Em um esporte, especialmente na modalidade masculina, onde o trabalho de psicologia é visto como “frescura” ou como algo que pode ser substituído pela religião, Jhon Arias mostra como o exercício da mente é tão importante quanto o do corpo.
Criador x criatura
Vamos agora viajar para o sul de Londres. Lá, foi fundado em 1889 o Wimbledon Football Club, um clube da cidade de mesmo nome que é mais famosa por sediar um dos quatro torneios mais importantes do calendário anual do tênis.
O Wimbledon FC (foco no nome com o FC no final. Já explico o porquê) passou a maior parte da sua história, desde a fundação até 1977, disputando ligas não profissionais da Inglaterra. Alguns anos após o profissionalismo, nos anos 90, começou um problema: o Plough Lane, estádio do time, não comportava a grandeza que o time estava tomando ao escalar as divisões profissionais do país.
Diversas tentativas de acordo foram feitas para a tentativa de se construir um novo estádio ou então reformar o existente. Mas não teve jeito. Além do mais, foi a fome com a vontade de comer: a nova cidade de Milton Keynes, a 90km de Wimbledon, tinha planos de construir um bom estádio e de levar alguma equipe relativamente grande pra lá.
Até que em 2003 a mudança foi feita: o Wimbledon FC se mudaria para Milton Keynes. Um ano depois, perceberam que não faria sentido manter no nome do clube uma cidade longe de onde ele era sediado, e aí ele foi rebatizado para Milton Keynes Dons.
Revolta em Wimbledon. A controversa mudança chateou bastante os torcedores locais e os deixaria órfãos de uma equipe local nas divisões profissionais da Inglaterra. Eu disse “deixaria” porque em 2002, quando as tratativas da movimentação do clube para Milton Keynes ainda estavam sendo feitas, um grupo de torcedores resolveu protestar criando um novo time para a cidade: o AFC Wimbledon, com o AFC antes do nome e com um “A” sendo agregado do “FC”.
Até 2011, o AFC Wimbledon disputou apenas campeonatos não-profissionais da Inglaterra. Até que ele foi promovido à League Two, o 4º nível mais alto do futebol inglês, equivalente à nossa Série D. Alguns anos depois ele foi promovido à League One (a terceirona), mas atualmente está na League Two de novo. E com a entrada no futebol profissional, o AFC Wimbledon encontrou seu “eu antigo”: enfrentou várias vezes o Milton Keynes Dons, antigo Wimbledon FC. O problema é que a vingança pela mudança raramente acontece: até o último dia 2, haviam sido disputados 14 jogos entre eles e o AFC Wimbledon venceu apenas duas. A última vitória foi em 2017 e desde então foram 9 jogos com empate ou vitória do MK Dons.
Mas no último domingo, a coisa deu uma mudada de figura de maneira memorável. No reformado Plough Lane, estádio que “não servia” para o Wimbledon FC, o AFC Wimbledon venceu o MK Dons por 1x0 com gol aos 94 minutos. Mais do que as palavras, as imagens e o som da torcida na comemoração do gol mostram o tamanho do grito que estava entalado na garganta do pessoal de Wimbledon.
O vídeo do gol mostra o tamanho da loucura: além do narrador ficando sem voz, Roman Curtis, que colocou a bola na rede, vai para a torcida para comemorar. No meio do caminho dele tinha uma criança fazendo o trabalho de gandula. Curtis não tem dúvida e simplesmente abraça e levanta o menino antes de se jogar nos braços dos torcedores.
O AFC Wimbledon quebrou um tabu de 7 anos contra o seu algoz e deu um recadinho para os clubes itinerantes: torcidas nunca estão à venda.
Vini Jr. x racismo
No último dia 2, Valencia e Real Madrid se enfrentaram na casa do Valencia pela primeira vez desde 21 de maio, quando os escrúpulos do racismo contra Vinícius Júnior foram mandados às favas de uma vez. As dezenas ou centenas de “casos isolados” viraram um caso ainda maior e que serviu para acordar até mesmo a Federação Espanhola, antes um antro de leniência em casos de racismo na liga.
Como era esperado, Vini Jr. encontrou na volta ao Mestalla um ambiente tão hostil quanto aquele de quase um ano atrás em que os gritos de “mono” deixaram de ser entoados por pessoas específicas e passaram a ser um coro de ódio. Haviam vaias toda vez que ele pegava na bola, num comportamento que segue tendo o mesmo nome, mas agora mais disfarçado.
Mas é claro que o racismo explícito também estava lá. Uma brasileira que assistia ao jogo filmou uma criança chamando Vini Jr. de macaco. A mãe do garoto tentou impedir a filmagem, mas era tarde demais. Além da criança, a brasileira relatou que os gritos racistas eram encarados como normais na torcida. Após a divulgação das imagens, ela disse que está sofrendo ameaças de torcedores do Valencia
Vini Jr. usa o ódio alheio como catalisador para mostrar ainda mais talento. Em um ambiente tão inóspito, ele fez os dois gols do Real Madrid e evitou a derrota para a equipe da casa. Na comemoração de um deles, ergueu o punho cerrado. É raro que eu publique fotos na newsletter fora da montagenzinha da abertura, mas esta aqui, reprodução da beIN Sports, fala o que as palavras não dizem:
Vini Jr. voltou ao Mestalla pra mostrar que só uma coisa mudou: ele joga ainda mais