Querida Paula,
Foi enorme a minha alegria quando abri o e-mail do sorteio do nosso amigo secreto de escritores de newsletters e surgiu seu nome em fonte tamanho 20. A alegria, advinda do meu reconhecimento da sua capacidade de encantar com palavras, veio acompanhada de um enorme senso de responsabilidade. Eu não preciso de muito para ficar ansioso, de forma que tirar justamente a idealizadora e organizadora do amigo secreto já foi o bastante.
Mas o que mais colabora para este senso de responsabilidade é que eu tenho claro na minha cabeça, altamente prática, materialista e numérica, que pessoas como você são algum tipo de super-heroínas das palavras. Como pode alguém transmitir tamanha sensibilidade sem deixar de lado um aprofundamento teórico e estilístico no que escreve?
Não foi por falta de tentativa: algumas das primeiras edições da Futebol no Fim do Mundo tentaram cavucar em temas mais particulares. Mas o custo interno, percebi, era grande demais e preferi adotar um formato em que eu me tirava do jogo (se é que tem como). Hoje, porém, isso não vai mesmo ser possível, em respeito ao caráter visceral da sua newsletter, não à toa chamada te escrevo cartas.
Como esta é uma carta peculiar, que todo assinante da Futebol no Fim do Mundo pode ver, cabe informar aquilo que você já sabe, mas o leitor bisbilhoteiro não: que esta edição foge um pouco das tradicionais da FFM. É uma carta a você, Paula Maria, minha amiga secreta, na minha edição inaugural de uma iniciativa de amigo secreto de newsletters, em que a pessoa autora sorteada recebe uma cartinha pública de quem a tirou. Isso não quer dizer que vamos deixar de lado o futebol e suas afetações.
Em busca de um ponto de partida para a minha cartinha, cheguei naturalmente à sua edição Quando um terapeuta morre. Nela, você nos conecta com a sensação de que não havia tido uma perda tão significativa até aquela que teve em 2024 e que, embora familiares próximos tenham nos deixado antes disso, houve tempo para que esse luto fosse pré-processado na medida que fosse possível. Foi assim comigo, na lida com a partida de Lúcia, Ignez e Amabile.
Em 2024, eu também entrei em contato com o oposto disso pela primeira vez. Por oposto eu digo o contato com o luto da forma menos pré-processável possível: Nalva Aparecida, mãe da minha esposa, com apenas 49 anos, de repente não estava mais viva. Nenhuma condição pré-existente que fosse sabida, nenhum acidente doméstico nem automobilístico. Nenhuma explicação: sem apego a uma prática espiritual, a falta de uma conclusão muito clara da autópsia também não contribuiu do lado material. Eu estava no estádio aos 32 minutos do segundo tempo de uma final de campeonato e aos 33 eu não estava mais. Embora a perda de minha esposa, sogro e cunhado sejam imensamente maiores, o contato com a saudade que Nalva deixa nunca fica confortável. Então eu não lhe desejo conforto por sua perda. Não desejo que você tente pular o muro e, na falta de um impulso, acabe se chocando com ele. Desejo que você tenha serenidade para buscar um caminho que desvie do muro.
Rafael Barrios é lateral direito do Central Córdoba. Há duas semanas o clube dele conquistou a Copa Argentina, o primeiro título nacional de um clube do norte do país na história. O sabor do título foi ainda mais especial a Rafael: em janeiro de 2024, ele e sua esposa perderam Valentino, seu filho de apenas três dias de idade, por problemas respiratórios decorrentes de um nascimento prematuro após uma gravidez com complicações.
A crueza da perda de Rafael também veio à minha memória, ajudado pela newsletter do Meiocampo que estava lendo minutos antes, junto com a de Nalva, quando estava lendo sobre a preparação que fazemos quando sentimos a iminência do fim de uma vida.
Sei que em certa medida processar as perdas ao meu redor é processar o meu próprio fim.
[...]
A vida é um jogo que não podemos ganhar, não nos termos capitalísticos do negócio. O trabalho é a constante consciência do fim, pois como bem define Irv: “quanto mais não vivida sua vida, maior a ansiedade sobre a morte”. Escrevo para vocês agora para que eu também não me esqueça.
Da sua newsletter.
Além de quem, o que deixamos em 2024?
No mesmo ano em que perdeu o filho, Rafael Barrios ajudou sua equipe a conseguir o primeiro título nacional de um clube do norte da Argentina.
No mesmo ano em que perdeu Nalva, minha esposa se tornou doutora pela USP e conseguiu uma vaga de pós doc para nos mudarmos para os Estados Unidos.
As perdas fazem olharmos para o que falta em nós. Por meio da dor, relembramos que tudo que nós temos é nós mesmos e agimos, mesmo a contragosto, para preencher uma parte mínima da lacuna que ficou.
Espero que em 2025 haja em você cada vez mais a presença de si mesma.
Um forte abraço,
Fernando Alves
Ah Fernando, que carta bonita. A vida é um mistério que não temos que resolver, disse uma moça que sigo no Instagram e que perdeu o irmão tbm esse ano. Sigo palavras e busco estrelas, disse Herbert Vianna depois de perder sua esposa Lucy. Me apego nas histórias alheias pra poder continuar e, oito meses depois, estou aqui... Seguindo. Obrigada pelas palavras, te abraço por sua perda e te desejo um 2025 gentil. Um beijo!
Linda carta, Fernando ❣️ além de ter perdido parentes próximos e importantes, meus processos de adoecimento também me levaram a essa conclusão: o que realmente importa, e o que temos alguma agencia, é a forma como vivemos cada dia da nossa vida. Como Paula Maria disse, que 2025 seja gentil para todos nós ✨️