FFM #40: as memórias doces de um menino em Old Trafford
+ resistência à transfobia no Reino Unido + o que a torcida do Colo Colo fez que a Conmebol não fez + a saga dos torcedores do Cerro Largo + Ayrton Senna e Dia do Trabalhador
Olá crianças!
A edição de hoje vem junto a um newsletteraço: um movimento de 14 autores de newsletters que estão publicando edições neste 30 de abril, todas tratando de um mesmo tema: memória, infância e sonho. Com a paulatina tentativa do Substack de se transformar mais em rede social do que plataforma de newsletters, vem à tona a necessidade de voltar à moda antiga e recomendar colegas que fazem um excelente trabalho sem a mediação de algoritmos e mensagens de consumo rápido. Então aproveite as edições extremamente frescas para conhecer e assinar o material de outros grandes autores:
Victória escreve a resenhas que ninguém pediu
Lethycia Dias escreve a Uma mulher que escreve
Leon Nunes escreve a O Substack de Leon
Carol Vidal escreve a Devaneios Criativos
Cadu Carvalho escreve a Tipo Aquilo
Júnior Bueno escreve a cinco ou seis coisinhas
Lívia Reis escreve a Colcha de Retalhos
Danilo Heitor escreve a Antes do fim
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Denise Gals escreve a Aprendiz de Escritora
Karine Canal escreve a Kverso
Patricia escreve a Uma com a Terra
Mia Sodré escreve a Querido Clássico
Manchester United: uma pausa no calvário para fabricar algumas memórias
O Manchester United está numa draga danada, que já vem de anos. A gestão do clube é desastrosa, resultando em anos de maus resultados. Eles não conquistam a Premier League há mais de 10 anos e tiveram na Liga Europa de 2017 o último título de alguma relevância. Mesmo estando entre os 5 clubes mais ricos do mundo, Os Red Devils estão no pífio 14º lugar no inglesão desta temporada.
Mesmo grandes contratações parecem desaprender a jogar quando chegam no lado vermelho de Manchester. Na mesma beira de campo onde Alex Ferguson brilhou por 26 anos, técnicos renomados vão, vem e não conseguem fazer bons trabalhos para além de alguns jogos com uma boa sequência. Enfim, algo de podre acontece no reino de Old Trafford.
Um péssimo momento para ser uma criança torcedora do Manchester United, certo? Você cresce vendo no TikTok e no YouTube os grandes momentos do seu clube, os títulos conquistados em sequência, as viradas épicas com gols no Fergie Time (como são conhecidos os minutos finais dos jogos na era Alex Ferguson, quando o time conseguia feitos épicos), os grandes jogadores… e tudo fica ali pela tela mesmo.
Mas na última quinta-feira foi diferente. Por quase exatos 5 minutos, o torcedor do Manchester United conseguiu se esquecer um pouco de tantos anos de tristezas. E as crianças puderam sentir o que só os adultos tinham sentido, lá nos tempos de David Beckham, Ryan Giggs, Paul Scholes, Eric Cantona, Cristiano Ronaldo e diversos outros.
No último dia 17, o Manchester United disputava com o Lyon a partida de volta das quartas de final da Liga Europa. Depois de um 2x2 na ida, uma vitória em casa no Teatro dos Sonhos (olha o tema do newsletteraço aí), como é apelidado o estádio de Old Trafford, era necessária para o time se classificar.
Tudo parecia bem no primeiro tempo, com o time da casa abrindo 2x0 no placar e encaminhando a classificação. Já na segunda parte, a equipe desabou e tomou o empate. 2x2 e prorrogação. Todos os pesadelos vividos pelo torcedor nos últimos anos pareciam se concretizar mais uma vez ali: o Lyon, que já estava com um jogador a menos após uma expulsão no final do tempo normal, fez 2 gols aos 14 e aos 19 minutos do tempo extra. 2x4. Tudo acabado, né?
Mais ou menos. Aos 22 minutos da prorrogação, Casemiro sofre pênalti e Bruno Fernandes converte. Surge uma esperança para pelo menos levar o jogo para os pênaltis. Mas o tempo passa e mais nada acontece. É aí que vem a angústia de um menino torcedor dos Red Devils: ele é filmado pela transmissão oficial da TV em prantos por mais uma derrota, mais uma eliminação, e por uma sensação de que nunca vai ver aquele Manchester United que seus pais lhe relatam.
Mas o time lá dentro tirou de algum lugar a mística do Fergie Time e dos grandes times dirigidos por Alex Ferguson. Tal como naquela final de Champions League de 1999, o Manchester United fez dois gols nos acréscimos, com Mainoo e Maguire. E tudo virou. Old Trafford voltou a ser o Teatro dos Sonhos. O time virou para 5 a 4 e se classificou. A câmera foi buscar aquele mesmo menino que chorava há 5 minutos, e agora a reação era bem diferente.
Após anos de um período turbulento e de momentos que estavam apenas nas memórias dos adultos ou nas telas de aplicativos, esse menino, e muitos outros que torcem para o Manchester United, cravou em si uma memória que vai ficar pelo resto da vida. E as câmeras flagraram o exato momento em que isso ocorreu, para que todo o mundo fosse testemunha.
Vale ver os gols que deram a classificação épica ao Manchester United. E as reações do menino em vídeo aqui e aqui.
Kerstin Casparij e a resistência à transfobia no Reino Unido
No início do mês, a Suprema Corte britânica decidiu pelo retrocesso e foi contra a comunidade trans do Reino Unido ao determinar que o sexo é definido no nascimento e que, portanto, seria imutável. A decisão vem na esteira de um movimento que teve como figura mais proeminente J.K. Rowling, autora de Harry Potter e notoriamente transfóbica, e que vem como resposta a uma decisão de 2018 do parlamento escocês que determinou que 50% dos cargos de diretoria de órgãos públicos deveriam ser de mulheres, incluindo mulheres trans.
Como resposta, a comunidade do futebol se manifestou. Kerstin Casparij, neerlandesa que joga no Manchester City, atuou na partida do dia 20/04 usando uma pulseira com as cores da bandeira trans. Ela foi além e marcou um gol na partida, beijando a pulseira. Kerstin já havia se posicionado em diversas oportunidades sobre a causa LGBTQIA+ como um todo.
A decisão da Suprema Corte, aprovada por unanimidade, encontra focos de resistência. A única juíza trans a ter atuado no Reino Unido já declarou que irá ao parlamento europeu contra a medida alegando que a medida fere os direitos humanos. Mais no Copa Além da Copa.
Duas vidas valem mais que três pontos
No último dia 10, Colo Colo x Fortaleza se enfrentaram por mais ou menos 70 minutos em Santiago, no Chile, valendo pela taça Libertadores. Esse tempo, já reduzido em relação aos 90 minutos normais de uma partida, nem deveria ter acontecido. Uma hora e meia antes do apito inicial, a polícia chilena matou dois jovens torcedores, um de 12 e outro de 18 anos. Em meio a um tumulto nos arredores do estádio, eles empurraram grades de organização de fluxo com as viaturas, pressionando os torcedores.
Para além da velha conhecida truculência policial chilena, que tem raízes ainda no pinochetismo, outro absurdo ocorreria nos bastidores: a Conmebol decidiu que o jogo aconteceria normalmente. Embora a desculpa já não cole tanto, afinal a confusão aconteceu havia mais de uma hora do início do jogo, foi usada a justificativa de que não haveria como suspender a partida sem informações precisas acerca do que havia ocorrido. No intervalo, porém, a notícia correu rápido e já não havia mais desculpas. Mesmo assim, o jogo foi reiniciado.
A torcida do Colo Colo, portanto, decidiu ela mesma fazer o que a Conmebol não fez. Invadiu o campo não para agredir jogadores e nem para brigar com a polícia, mas sim para chamar atenção para a gravidade do que havia rolado do lado de fora. Dois dos seus, um adolescente em si e o outro praticamente, haviam morrido, e a Conmebol não queria que isso “manchasse o espetáculo”.
A cena mais chocante da invasão não é captada na transmissão, mas veio depois. É o momento em que Lucas Cepeda, atleta do time chileno, recebe dos torcedores a informação do que havia ocorrido para motivar a invasão. Ao receber a notícia, ele leva as mãos à cabeça. Logo em seguida, faz um sinal de “acabou”: não havia mais nenhum clima para um jogo de futebol ali, mesmo que os torcedores se dispersassem.
A torcida organizada do Colo Colo que iniciou a invasão de campo soltou um comunicado após o jogo repudiando a ação dos carabineros, reforçando suas motivações e declarando que “duas vidas valem mais que três pontos”. Mais na newsletter do Puntero Izquierdo.
Drops
Na última quarta-feira, 23 de abril, os uruguaios do Cerro Largo visitaram o Vitória em Salvador e saíram com uma surpreendente vitória, em jogo válido pela Copa Sul-Americana. Foi o primeira triunfo de um clube do interior do Uruguai como visitante em uma competição internacional. Mas chamou ainda mais atenção a presença da massa do Cerro Largo nas arquibancadas: um total de duas pessoas. Paolo Tort e Ricardo Tort, primos, vieram do Uruguai para acompanhar a equipe e foram os únicos que acompanharam in loco a grande vitória. O esforço valeu a pena e eles foram reconhecidos pelo Cerro Largo como sócios honorários do clube, e de quebra ainda acompanharão o elenco na próxima partida da competição. Mais, de novo, no Puntero Izquierdo.
A publicação desta edição vem na véspera do Dia do Trabalhador. Naquilo que concerne ao futebol e ao esporte em geral, a data também é marcante por ser o dia em que Ayrton Senna morreu, no ano de 1994, na curva Tamburello da pista de Ímola. E o futebol entra nisso, pelo menos na minha memória, por algo que aconteceu naquele mesmo dia: Palmeiras e São Paulo se enfrentaram no Morumbi em partida do Campeonato Paulista. No minuto de silêncio, que de forma pouco usual foi feito no meio do jogo, as duas torcidas se uniram para cantar o nome de Ayrton Senna. O piloto era um fanático corinthiano.