O "fim" da Trivela, o primeiro campeão do ano e o futebol em meio às bombas
Esta é a Futebol no Fim do Mundo #20
Olá!
A edição de hoje fala sobre ciclos: um que se encerra, um que começa já glorioso e outro que teima em continuar mas é interrompido a todo momento.
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O “fim” da Trivela
Há 10 anos, a MTV Brasil acabava. Não era o fim de fato, o canal segue por aí até hoje, mas definitivamente não fala com o jovem da mesma forma que aquele canal aberto (O 32 no UHF de São Paulo, ainda lembro) falava.
As semanas anteriores ao fim da MTV foram um festival de nostalgia misturado com uma dose grande de bizarrice que só um canal que estava acabando poderia se dar ao luxo de protagonizar. Vídeos d'O Último Programa do Mundo seguem circulando por aí e viraram um ícone cult do que foram aqueles tempos de despedida.
A sensação que eu tive com o “fim” da MTV é bastante similar com a do “fim” da Trivela, agora em novembro de 2023.
A Trivela era/é um site especializado em futebol com mais de 20 anos de existência. Embora tenha se aberto ao futebol brasileiro nos últimos anos, sempre teve um foco no esporte praticado fora daqui. Além de site, já foi revista e também era podcast até seus “últimos momentos”. De lá, saíram vários analistas de futebol que ganharam notabilidade na ESPN, por exemplo.
Nos últimos anos, a Trivela quase foi fechada por não conseguir se sustentar financeiramente. Com muitas dificuldades, o site foi mantido no ar por três baita jornalistas: Felipe Lobo, Bruno Bonsanti e Leandro Stein. Mas pela qualidade e pela quantidade de matérias, parecia que a equipe era de umas 10 pessoas. O site se destacava por textos aprofundados, de temas até mesmo históricos e políticos, e que fugiam da tendência caça-clique que está em voga. Com a mesma excelência, falava de assuntos mais quentes, como os jogos do fim de semana.
Em 2023, o site foi vendido para uma empresa francesa. Mas mesmo com a garantia da manutenção da equipe original, começou a haver uma série de desacordos e de decisões que contrariavam a política editorial anterior. Em resumo, o site não ficou necessariamente ruim, mas passou a ser como qualquer outro que tem por aí.
Com esse desgaste, o grupo de três jornalistas originais tomou a decisão de sair da Trivela no dia 30/11, deixando-a definitivamente entregue a um tipo de jornalismo que privilegia mais os cliques e menos a excelência.
Para mim, fica uma sensação do fim de uma era e de um buraco de qualidade que vai ficar na imprensa esportiva. Assim como a MTV deixou um buraco na forma franca e verdadeira com que falava com os jovens.
A última matéria de Leandro Stein na Trivela foi publicada às 23:59 do dia 30/11. Além de dar uma uma noção das temáticas das pautas e da profundidade (tem 33 minutos de tempo estimado de leitura) trazida nelas, também me trouxe uma vibe kamikaze de Último Programa do Mundo: fala sobre como o futebol ajudou a Argélia a se libertar do colonialismo… dos franceses.
O primeiro campeão do ano
Quase todo ano, uma combinação muito louca de tradição e fuso horário traz um fenômeno interessante, especialmente para os nerds da bola: mais ou menos ali na 5ª hora de um novo ano, já existe um campeão no futebol profissional.
O primeiro time do mundo a levantar a taça no ano geralmente é o vencedor da Copa do Imperador, o nome dado à principal copa nacional do Japão. Por tradição, a final do torneio acontece quase sempre no dia 1º de janeiro, por volta das 02h30 no horário de Brasília. Portanto, é possível que você ainda esteja bêbado do réveillon quando lá do outro lado do mundo já tem time levantando taça.
Nos últimos dois anos, porém, a final da Copa do Imperador foi antecipada. A final que seria em 01/01/2023 aconteceu em outubro de 2022, por causa do período não convencional da Copa do Mundo, e teve vitória de uma equipe da segunda divisão. Já a final que seria em 01/01/2024 aconteceu em dezembro de 2023, para não atrapalhar a preparação japonesa para a Copa da Ásia, que começa dia 12 de janeiro.
Como presente de consolação neste ano, no mesmo dia e horário em que costumam acontecer as finais da Copa do Imperador, rolou um amistoso preparatório da seleção japonesa para a Copa da Ásia, com vitória da equipe nipônica sobre a Tailândia por 5 a 0.
Para aproveitar a lacuna deixada pelo Japão de proporcionar o primeiro campeão do ano no mundo, Hong Kong teve a final de sua Copa da Liga no dia 1º de Janeiro. Às 6h30 daqui, foi iniciado o jogo que terminou com vitória nos pênaltis do Kitchee, equipe que conta com cinco brasileiros no elenco, sendo dois naturalizados.
Futebol sim, mas antes uma pausa para as bombas
Vamos chegar no mês que vem a dois anos de guerra da Ucrânia. Foi nesse contexto de urgência global que a Futebol no Fim do Mundo surgiu e foi cunhada com o nome que tem.
Foram seis meses de muito bombardeio e de avanços na invasão russa até que fosse sentido um mínimo de segurança para que o futebol voltasse. Ele voltou, mas após um ano e meio de bola rolando novamente, os gritos de jogadores pedindo a bola e das instruções dos técnicos são interrompidos por sirenes com alertas de ataques aéreos. E eles acontecem com bastante frequência.
Como medida de segurança para a volta, e que segue até hoje, já na segunda temporada de futebol ucraniano após o início da guerra, existe a obrigatoriedade da paralisação das partidas e da evacuação do campo de jogo quando há um alerta de ameaça. Jogadores e outros envolvidos são levados a abrigos antibomba próximos aos estádios. Como os abrigos não podem comportar torcedores, os jogos acontecem com portões fechados.
Assim como passou a acontecer mais recentemente também com as equipes israelenses, os jogos de times ucranianos em competições europeias precisam acontecer em outros países. Mesmo assim, como demonstração de solidariedade, a população local costuma lotar os estádios.
No fim de 2023, uma reportagem do Guardian acompanhou a jornada de uma equipe feminina de Mariupol para atuar numa partida fora de casa pelo Campeonato Ucraniano. Ao final do primeiro tempo, a sirene soou e as equipes deixaram o campo para o abrigo, onde ficaram por três horas até a saída ser liberada. Sem condições financeiras para se hospedar na cidade, o elenco precisava voltar no mesmo dia, completando mais de 15 horas entre as viagens e o jogo, que teve mais de cinco horas entre os apitos inicial e final. A matéria ainda traz as dificuldades trazidas à equipe e ao futebol feminino do país após a invasão russa.
Há duas horas do momento em que este bloco da newsletter estava sendo escrito, e quando a pauta já estava planejada, a Federação Ucraniana de Futebol informou que uma ex-jogadora ucraniana de futebol Viktoriya Kotlyarova, além de sua mãe Ludmila, estavam entre as 30 vítimas do ataque aéreo feito pela Rússia a Kiev, em 29 de dezembro.
Mesmo com as restrições, os ucranianos mantêm a bola rolando - a seleção do país até mesmo ainda tem chances de se classificar à Euro 2024. O futebol cumpre um pequeno ato de resistência e de tentativa de retomada da normalidade, ainda que as sirenes durante os jogos tentem lembrá-los do contrário.
Valeu demais pelo carinho, Fernando!