Inglaterra e o ataque ao direito de pertencimento de jogadoras trans
+ ecos do genocídio em Gaza e os reféns de Israel + Pepe Mujica e o futebol na memória da ditadura no Uruguai + a vitória parcial do medo em Nashville
Na última edição da FFM, falamos um pouquinho sobre uma resolução da Suprema Corte britânica de que o sexo é definido no nascimento e que, portanto, seria imutável, na esteira de uma legislação sobre a presença de 50% de mulheres em cargos de diretoria de órgãos públicos. Ali mesmo já ecoou o protesto de Kerstin Casparij, jogadora do Manchester City, beijando uma pulseira nas cores da bandeira trans ao marcar um gol pelo seu time.
Mas o pior ainda estaria para vir. Mais exatamente no dia seguinte à publicação da newsletter. A FA, federação de futebol da Inglaterra, não demorou nem um bocadinho para acatar a decisão da Suprema Corte. Antes mesmo de definidas as implicações da mudança, determinou o banimento de jogadoras trans de todas as competições do país, amadoras ou profissionais. A decisão afeta diretamente cerca de 20 atletas trans que atuam entre as divisões amadoras do país.
A reação contra a medida da FA foi imediata e veio de diversas instâncias, locais ou globais. Uma marcha foi feita até o lendário estádio de Wembley em protesto à determinação. Um dos motes do protesto, organizado por um clube dedicado a acolher mulheres, pessoas não-binárias e pessoas em inconformidade de gênero, foi mostrar que o objetivo da FA é de tirar pessoas trans da vida pública.
Parte desse objetivo já foi alcançado antes mesmo de a medida entrar em vigor: Amelia Snowdon, atleta trans e goleira de uma equipe feminina inglesa, soltou uma carta anunciando o encerramento de seu contrato com o Castle Point Rangers. Na carta, ela menciona a nova medida como razão para a decisão, além do desejo de sair do futebol feminino em seus próprios termos, sem ser oficialmente expulsa.
O mundo do futebol feminino ficou impactado com a medida para além do Reino Unido, e movimentos de apoio vieram até de fora do continente europeu. Nos EUA, cada um dos times de sua principal liga feminina tem uma associação de pessoas torcedoras, e todas elas se juntaram em uma campanha que tem como luta o pertencimento de pessoas trans. Esse posicionamento firme vindo desses grupos, de maioria cisgênero, é importante tendo em vista eventos como uma recente medida de Donald Trump proibindo atletas trans em competições femininas nos EUA, cuja assinatura foi feita ao lado de diversas apoiadoras, muitas delas jovens.
Porém, infelizmente o mesmo apoio não vem dos homens. Enfiados em uma bolha construída por uma mistura de indiferença com doses cavalares de “gestão de imagem”, eles geralmente se omitem quando consideram um assunto minimamente controverso. O australiano Jackson Irvine, capitão do alemão St. Pauli, lamentou que seja assim: “Ainda temos um longo caminho a percorrer no futebol, e especialmente no futebol masculino, para nos manifestarmos sobre quaisquer questões sociais e, especialmente, quando se trata dos direitos LGBTQIA+, onde talvez os jogadores não se sintam confiantes ou apoiados para fazer declarações”.
E quis o destino que a primeira resposta dentro de campo contra a medida viesse justamente ali pelo próprio Commonwealth: o Canadá passa a ter a partir deste ano uma liga feminina de futebol. Ela foi iniciada em abril com a vitória do Vancouver Rise por 1 a 0. O primeiro gol da competição foi feito por Quinn, jogadore trans e não-binárie, lenda da seleção canadense e que jogava nos EUA antes de o Canadá fundar sua liga.
Que a força dos movimentos faça a FA rever sua posição. E que haja direito ao pertencimento.

O massacre e o futebol
A guerra entre Israel e o Hamas vai deixando seus muitíssimos mortos, seus deslocados, seus feridos e suas feridas. Após mais de um ano e meio do ataque do Hamas que iniciou o massacre em curso, os dois lados trazem histórias futebolísticas vividas por gente que espera que o pior já tenha passado.
Na Turquia, antes do início da semifinal da copa local entre Konyaspor e Galatasaray, os dois times entraram em campo acompanhados de crianças palestinas sobreviventes da agressão israelense a Gaza, algumas delas com consequências irreversíveis. A entrada das crianças, que haviam sido mandadas para a Turquia para tratamentos emergenciais, foi acompanhada de mensagens alertando o mundo para a brutal situação humanitária vivida no local.
Em Israel, três dos reféns liberados na última rodada de negociações entre Israel e o Hamas estiveram presentes em homenagens feitas pelos seus times de coração. O depoimento mais emocionante veio de Emily Damari, torcedora do Maccabi Tel Aviv, que disse ter gritado, mesmo sem permissão para isso, no cativeiro quando soube pelo rádio que o clube havia sido campeão da última edição da liga, e relatou uma angústia que continua mesmo após sua libertação, já que seus dois irmãos seguem reféns.
Viajando para o Chile, o Palestino, clube de futebol da comunidade do território do oriente médio no país sul-americano, anunciou uma doação para devolver camisas que foram roubadas por forças israelenses em um campo de refugiados na Cisjordânia. O roubo das camisas, que já eram uma doação anterior do clube ao centro juvenil local, foi flagrado pelas câmeras de segurança.
De volta a Israel, no último dia 10, o Hapoel Jerusalem, clube de origem trabalhista do país e time de coração de Hersh Goldberg-Polin, fanático por futebol e vítima fatal do Hamas em uma das destrambelhadas operações de resgate do IDF, disputou sua última partida da temporada. Finalizada a participação do clube no campeonato, seu treinador Ziv Aryeh se recusou a falar de futebol na entrevista coletiva. O técnico manifestou seu protesto por as duas últimas temporadas terem acontecido normalmente enquanto a guerra rolava e, do lado israelense, reféns se mantinham em cativeiro. Ele defende que a próxima temporada não seja iniciada caso o conflito ainda esteja em curso.

Uruguai: Pepe Mujica e a memória pelas vítimas da ditadura
Pepe Mujica faleceu no último dia 13. Preso pela ditadura uruguaia entre 1973 e 1985 e presidente do país entre 2010 e 2015, ele ficará marcado como uma das figuras mais brilhantes da história latino-americana.
Em se tratando de obituários e futebol, eu nem me arrisco a falar muito. Apenas deixo o link da newsletter Meiocampo, onde Leandro Stein, o maior obituarista do Brasil na temática do futebol, resgata a vida de Mujica e foca em sua relação com o esporte.
Uma das histórias mais anedóticas de Mujica no período de sua presidência do Uruguai está justamente relacionada ao futebol. Pepe estava cotado para vencer o prêmio Nobel da Paz em 2014. O problema é que era ano de Copa do Mundo. O Uruguai foi eliminado nas oitavas de final para a Colômbia, sem Luis Suárez, que tomou uma punição pesada após morder o italiano Giorgio Chiellini em um jogo da fase de grupos. Na recepção à equipe que retornava do Brasil, Pepe disparou: “A Fifa é uma corja de velhos filhos da puta. O caso Suárez será uma vergonha eterna do futebol. Poderia se entender uma injustiça ou uma sanção, mas não uma monstruosa agressão.”
Embora não tenha saído uma justificativa oficial, especialistas e conselheiros do presidente entenderam que foi nesse momento que suas chances se dissiparam e que o Nobel da Paz foi para outras mãos (também muito boas), indo para Kailash Satyarthi e Malala Yousafzai. (Por mais que Mujica não estivesse exatamente errado em sua fala).
Mujica se foi justamente alguns dias antes da Marcha do Silêncio, evento anual que acontece desde 1996 no Uruguai e que celebra a memória das vítimas de mortes, desaparecimentos, perseguições e torturas da ditadura do país, exatamente aquela que vitimou Pepe por tantos anos (veja o filme Uma Noite de 12 Anos).
Em um costume que deveria ensinar muito a nós e em como lidamos com a ditadura brasileira, o futebol uruguaio costuma participar das celebrações em memória de suas vítimas. Os jogadores dos dois maiores clubes do país, e ferrenhos rivais, Nacional e Peñarol, entraram em campo com uma camiseta com a frase “todos somos familiares”, pedindo que a população se lembre e lute pelas vítimas da ditadura como se fossem seus próprios entes queridos.
A homenagem, bonita e necessária, não parou por aí. Após a rodada, os dirigentes dos dois clubes se posicionaram de forma diferente sobre a mensagem trazida pelos jogadores. O Nacional soltou um comunicado afirmando que a ação dos atletas foi um ato de “desinteligência interna” e defendendo uma absurda neutralidade em relação ao que chama de “temas políticos”. O presidente do Peñarol, Ignacio Ruglio, defendeu seu plantel, afirmando que foi consultado sobre a ação e que inclusive a autorizou, e rebateu o posicionamento do Nacional afirmando que “isso não tem nada a ver com política”. É isso.
Não estamos todos aqui
Os Estados Unidos, de um país de oportunidades para latino-americanos fugindo de diversas situações degradantes em suas terras natais, se tornaram desde o começo de 2025, quando Trump assumiu a presidência, um lugar de medo, independentemente da sua situação legal de quem atravessa essas fronteiras. A perseguição a imigrantes, especialmente aqueles que não correspondem a “certos padrões”, segue forte e não obedece nenhum devido processo legal. Na cidade do norte da Flórida onde vivo desde abril, já vi cartilhas afixadas em restaurantes de latinos informando como agir, o que esperar e quais são seus direitos no caso de uma abordagem do ICE, a agência de imigração dos EUA.
A cidade de Nashville, principal cidade do estado do Tennessee, é uma das grandes afetadas pelas operações do ICE. Restaurantes já tiveram que ser fechados por causa da fuga de boa parte de seus funcionários devido ao medo de uma deportação ou algo ainda pior, como o envio a El Salvador, onde um acordo com o ditador Nayib Bukele tornou o país em uma espécie de campo de concentração.
E veio do futebol de Nashville um dos protestos contra as medidas autoritárias de deportação promovidas pelo governo. Numa partida do Nashville FC surgiram, em inglês e espanhol, faixas com a frase “não estamos todos aqui”. A torcida organizada que organizou o protesto é formada majoritariamente por latino-americanos e inclusive tem seu nome em espanhol: La Brigada de Oro.
A torcida organizada ainda suspendeu as festividades que costuma fazer antes e durante os jogos e que dão mais animação e cor às partidas. Além de torcedores que já foram alvo de ações contra os imigrantes latino-americanos da cidade, a faixa também faz referência àqueles que passaram a não sair de casa, nem mesmo para trabalhar, por medo.
O futebol, disparadamente o esporte dos EUA com maior participação latina em suas arquibancadas, começa a perder o colorido e a animação, sendo substituído pelo medo e pela repressão.