Uma Copa do Mundo alternativa, Didier Drogba e "cenas lamentáveis"
Esta é a Futebol no Fim do Mundo #26
A Copa do Mundo de quem não tem lugar nele
No último dia 21 foram divulgados os grupos da Copa do Mundo da ConIFA, sigla para Confederação de Futebol de Associações Independentes. O torneio vai ser disputado entre junho e julho no Curdistão e vai contar com seleções como Caxemira, Ossétia do Sul, Tibete e, claro, os donos da “casa”. As datas escolhidas não são em vão, servem como um contraponto simultâneo às grandes competições do período: Eurocopa e Copa América.
A Wikipédia definiu bem o trabalho da ConIFA:
“É uma organização que fornece uma saída para países, entidades subnacionais, povos sem estado e minorias étnicas para jogar futebol internacional. Como vários de seus membros representam diásporas ou povos deslocados, nem sempre é possível para o anfitrião da Copa do Mundo de Futebol ser capaz de manter a competição em seu próprio ‘território’. Como consequência disso, a ConIFA define o ‘anfitrião’ da Copa do Mundo de Futebol como sendo a associação que lidera o comitê organizador, se o torneio é ou não jogado na área geográfica que a associação anfitriã representa ou não.”
Realizada a cada dois anos, essa é a chance de um encontro entre parceiros de luta pelo reconhecimento de sua identidade. Cada território tem um maior ou menor histórico de luta por independência, mas todos ali se reconhecem como uma comunidade descolada do lugar onde pertencem.
Na edição de 2024, o Curdistão tenta apagar um histórico chato de edições anteriores e conta com o direito de ser “país”-sede para isso. Digo chato porque estamos falando da maior população não representada do mundo, com 30 milhões de pessoas. Mesmo assim, não passou do 6º lugar nas edições que disputou.
Uma figurinha carimbada na competição é a Abecásia. Único território que terá disputado as quatro edições, o time vem em busca do segundo título, já que foi campeão em 2016. Também pudera: o território, que faz parte da Geórgia e busca independência há 25 anos, já contou com jogadores que atuaram em ligas menores da Rússia, segundo o Última Divisão em um excelente guia para a edição de 2021 da Eurocopa da ConIFA.
Quem também chega forte para a disputa é a Transcarpátia. Eles são os atuais campeões, na disputa que aconteceu em 2018. Mas tem um desafio: a região está próxima de um epicentro de guerra. O território da Transcarpátia fica na Ucrânia e abriga uma comunidade húngara. Com o enfraquecimento ucraniano causado pela guerra, a extrema-direita do país de Viktor Orbán já sugere anexar a Transcarpátia em caso de vitória russa.
Mais sobre a Copa do Mundo da ConIFA na thread do Por Fora das Quatro Linhas. E seguiremos atentos a essa competição onde o futebol é apenas um pretexto para uma busca por maior representação desses povos.
BREAKING NEWS:
Depois que este bloco da newsletter já estava finalizado, chegou uma notícia que deixou a Copa do Mundo da ConIFA ainda mais interessante: ela terá um representante brasileiro pela primeira vez! Duas vagas ainda estavam pendentes, e uma delas foi preenchida pela Federação Alternativa de Desporto, de São Paulo. A FAD é uma entidade que organiza competições amadoras pelo estado e que formará um time para a disputa da Copa do Mundo. Boa sorte para a FAD!
“Perdoem. Perdoem. Perdoem”
Vamos falar da Costa do Marfim pela segunda semana seguida sim. Melhor falar dela do que do Daniel Alves, mesmo que nós tenhamos todas as informações para falar do assunto, ao contrário do Tite. Mas desta vez vamos focar em Didier Drogba. Após a conquista da Copa Africana de Nações no último 11 de fevereiro, vieram à superfície histórias do maior ídolo futebolístico do país. Em um continente que parece inexistente aos sites de notícias, esses momentos são bons para trazer à luz histórias do continente mãe.
A Costa do Marfim conseguiu sua independência da França em 1960. Desde então, ela foi liderada pelo chefe tribal Félix Houphouët-Boigny. Ele foi o líder máximo do país até sua morte, em 1993. A partir daí, conflitos políticos começaram a acontecer na busca pelo poder.
Esses atritos continuaram por quase dez anos, tendo uma eclosão em 2002 com o início de uma guerra civil no país. De um lado, forças governistas se estabeleceram no sul. Já do lado norte, mais pobre, estavam forças rebeldes lideradas por imigrantes e descendentes de outros países. Por uma grande coincidência, nesse mesmo ano a Costa do Marfim viveu o início da maior geração futebolística de sua história, liderada por Didier Drogba. A partir desse momento, a história política e a história da seleção passaram a andar lado a lado.
Pulamos três anos, para 2005. Nas ruas, a guerra ainda destruía o país. Nos campos de futebol, estrelas como Yaya Touré, Salomon Kalou, Emmanuel Eboué, Kader Keita e, claro, Drogba, brilhavam na Europa. Se você tem mais de 30 anos e jogava Winning Eleven, pode confessar que bateu uma nostalgia agora.
Era o mês de outubro daquele ano. No Sudão, a Costa do Marfim venceu a equipe da casa e se classificou para a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha, de maneira agônica. Isso porque Camarões, que eliminaria os marfinenses se vencessem a partida simultânea, perdeu um pênalti aos 49 do segundo tempo com o jogo empatado.
Com a classificação confirmada, todos os holofotes foram para o craque do time, Drogba. E ao vivo na televisão, ainda no vestiário, ele aproveitou o momento para fazer um apelo. Trago aqui as aspas do texto dos assinantes do Copa Além da Copa:
“Homens e mulheres da Costa do Marfim. Do norte, do sul, do centro, do oeste, hoje provamos que todos os marfinenses podem coexistir e jogar juntos com um objetivo compartilhado: a classificação para a Copa do Mundo. Prometemos que as celebrações iriam unir a população. Hoje, imploramos a vocês de joelhos” (nesse momento, os jogadores todos se ajoelharam).
“Perdoem! Perdoem! Perdoem! O único país da África com tantas riquezas não deve entrar em guerra. Por favor, abaixem as armas e realizem eleições. Tudo ficará bem”, concluiu. Os jogadores passaram a cantar: “queremos nos divertir, então parem de atirar/Queremos nos divertir, então parem de atirar”
O vídeo do momento pode ser visto aqui.
As pessoas já estavam cansadas da guerra, especialmente aquelas que só se prejudicavam com o conflito. O vídeo de Drogba foi repetido de forma incessante na TV marfinense e serviu como um chamado: meses depois, começaram as tratativas para a paz. Seria simplista dizer que Drogba parou a guerra, mas contribuiu muito para isso.
A partir daquele momento, Didier Drogba passou a ser um embaixador pela paz no país, atuando de forma ativa de diversas formas para que o conflito se encerrasse, como na vez em que decidiu por conta própria (mesmo sem saber se tinha poder para isso) transferir uma partida contra Madagascar do sul governista para o norte, epicentro da guerra civil. E quem iria dizer não? O jogo aconteceu onde Drogba determinou, e os líderes dos dois envolvidos na guerra viram o jogo lado a lado.
A guerra civil terminou em 2007, e Drogba seguiu em seu ativismo, agora expandindo fronteiras: criou sua fundação beneficente, se tornou embaixador das Nações Unidas, doou recursos para a construção de escolas e hospitais e atuou de forma ativa, não apenas com palavras, na construção de um mundo melhor.
Veja em mais detalhes a história de Drogba e seu ativismo no excelente texto do Ludopédio.
De lamento em lamento, chegamos onde chegamos
No último 11 de fevereiro, Sport e Fortaleza empataram em 1x1 pela Copa do Nordeste. Após o jogo, na saída da delegação do Fortaleza da Arena de Pernambuco, o ônibus da equipe foi atacado com pedras e bombas, deixando vários jogadores feridos e a estrutura do veículo destruída. Além dos ferimentos, o ataque gerou comoção nacional pela barbaridade. Thiago Galhardo, um dos atingidos, foi afastado do Fortaleza por uma semana devido a crises de pânico relacionadas ao episódio.
Já é velho o debate de como as punições brandas a casos como esse trazem aos paraticantes a sensação de que sairão impunes. O debate é velho justamente por não existir solução única. Nos interessa mais saber quando e como foi que chegamos a esse ponto em que o futebol está sempre sendo atrelado a metáforas de guerra, como “lutar pela vitória”.
E nesse sentido, dois textos publicados na esteira da selvageria praticada por esses torcedores específicos do Sport ajudam a dar profundidade no tema.
O primeiro deles é do Gabriel Dudziak, comentarista da CBN e que também tem uma newsletter, onde falou sobre o assunto. Ele já começa quebrando um viralatismo nosso, de que esse tipo de coisa só acontece no Brasil e no máximo na América Latina. Dudziak traz um exemplo grave de violência psicológica contra um atleta que atua na Inglaterra. É o típico caso de “ou joga por amor ou joga por terror” que mencionei algumas edições atrás, no caso do atleta do Bahia que resolveu se aposentar (e depois voltar atrás) aos 21 anos.
É difícil entender quando está sendo ultrapassada a linha da simples corneta e da vontade de ver um jogador se dedicando mais ao time com a do abuso psicológico. E é aí que o problema vem. A minha linha pode ser diferente da sua. Da newsletter do Gabriel:
É verdade que o futebol está sempre na linha fina entre entretenimento e seriedade, descontração e profissionalismo, superação e diversão e que por isso “falar mal” ou “cornetar” pode sempre fazer parte da experiência de quem torce, consome e produz conteúdo sobre esporte. Por outro lado, estes aspectos mais “soltos” em relação ao esporte, muitas vezes têm dado licença a desrespeitos, ofensas e a tudo o que vem depois disso… Afinal de contas, quem é que traça o limite?
Um ator importantíssimo na hora de traçar essa linha poderia ser o jornalismo esportivo. Aqui chegamos ao outro texto, escrito pela Larissa Bezerra no Ludopédio. Logo no título, ela traz o problema por trás de uma frase que, de tão usada no jornalismo, já virou motivo de piada e até página de humor futebolístico: “cenas lamentáveis”.
O problema não está em considerar cenas de violência no futebol como lamentáveis, é claro, mas sim em como o debate chega a ser tão raso que se resume a uma única frase. Tudo o que é falado em seguida geralmente é algum pedido superficial de solução, como se fosse um problema novo, e não como se as soluções oferecidas anteriormente pelas autoridades fossem, na maioria das vezes, inócuas.
Além de mencionar a falta de disposição do jornalismo esportivo em tratar o problema pela raiz, chamando estudiosos e pessoas que acompanham de perto o modus operandi da violência no futebol, Larissa lembra que a violência não começa apenas na primeira pedra arremessada em um ônibus:
O mais simples é jogar a culpa nas torcidas organizadas por todos os problemas existentes e esquecer (...) que essa é uma interpretação superficial. Sem contar que violência no futebol não é só confronto físico entre torcedores. Racismo, homofobia, machismo, violência policial, tratamento dado ao torcedor, horários inadequados das partidas, corrupção e exclusão social também são formas de violência manifestadas no futebol (...). Quando isso tudo é discutido?
A linha do que é e do que não é violência está muito torta. E ninguém parece querer ajustá-la, porque parece mais interessante fazer programa de “resenha”.
Leia o texto da Larissa.